Em 27 de janeiro de 2013 a Boate Kiss, localizada na área central de Santa Maria, sediou a festa universitária denominada “Agromerados”. No palco, se apresentava a Banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico cujas centelhas atingiram parte do teto do prédio, que era revestido de espuma, que pegou fogo. O incêndio se alastrou rapidamente, causando a morte de 242 pessoas e deixando mais 636 feridos[1].
O Ministério Público é o titular da ação penal. Inicialmente, aos quatro foi imputada a prática de homicídios e tentativas de homicídios, praticados com dolo eventual, qualificados por fogo, asfixia e torpeza. No entanto, as qualificadoras foram afastadas e eles respondem por homicídio simples (242 vezes consumado e 636 vezes tentado)[2].
Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann eram sócios da casa noturna. Marcelo de Jesus dos Santos era vocalista da Banda Gurizada Fandangueira. E Luciano Bonilha Leão, o auxiliar do grupo musical[3].
O julgamento, no tribunal do Júri, iniciou em 1º de dezembro de 2021 e encerrou em 10 de dezembro de 2021, sendo considerado o mais longo da história do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul e fora presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto. Na decisão, com reconhecimento do dolo eventual (absurdo nesse caso), os réus foram condenados por homicídio simples de 242 pessoas e por mais 636 tentativas de homicídio simples em concurso formal[4], sem desígnios autônomos[5], aplicando-se a exasperação[6] da pena.
A complexidade do caso exigia mais do que 10 dias de julgamento para decisão final, contudo, o magistrado conseguiu otimizar e reduzir o número de depoentes em plenário. Como saber a importância das falas que não estiveram no plenário? Poderiam mudar o resultado? Jamais saberemos!!
A dor dos familiares durante esses nove anos desde o ocorrido é evidente e extremamente compreensível, pois a grande maioria dos falecidos foram jovens, deixando pais desconsolados. Entretanto, não podemos olvidar que os acusados também perderam pessoas próximas na tragédia e estiveram entre as possíveis vítimas uma vez que estavam dentro da casa no momento do incêndio. Além disso, carregam nas costas o peso da tragédia e, como consequência, um processo carregado midiaticamente pela proporção do resultado, mas que não poderia influenciar no resultado. Porém, não foi isso o que vimos no julgamento já que o Ministério Público fez questão de aumentar a dor das famílias apresentando fotos dos filhos mortos apenas para sustentar uma tese esdruxula de dolo eventual.
Vislumbramos, por meio da decisão judicial, uma vingança como forma de confortar os pais das vítimas, porém, tenho a certeza de que esse conforto não ocorreu e, ainda por cima, aconteceu uma das maiores atrocidades no direito, quando condenaram os réus por homicídio com dolo eventual. Foi realizada uma ginástica hermenêutica para a denúncia e condenação dos acusados com essa tipificação, pois estávamos diante de uma tragédia que poderia ser classificada como culposa, mas assim ficaria fora do tribunal do júri, algo inaceitável pela grande mídia e pelo MP. Por que a tragédia de Brumadinho, com 270 mortos não foi para o tribunal do júri? Será que é devido ao nível de réus envolvidos?
Ao final da sentença do Magistrado, quando já solicitava a execução da pena, ele fora avisado do Habeas Corpus preventivo (0062632-23.2021.8.21.7000)[7] impetrado pelo Advogado do acusado Elissandro Sphor, determinando que os réus não poderiam ser presos naquele instante já que a prisão em primeira instância é considerada inconstitucional, por força do princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII da CF). Jogada de mestre do ilustríssimo Dr. Jader Marques, antevendo o cenário que se avizinhava.
Na decisão, que ora disponibilizo recorte temos: “Passando agora ao exame da realidade fática, tenho ciência, até por habeas corpi anteriormente julgados, que o nobre magistrado que hoje preside aquele julgamento tem (ou pelo menos tinha) efetivamente entendimento contrário, decretando a segregação do réu quando condenado pelo Tribunal do Júri, o que justifica o temor de coação ilegal que venha a sofrer o paciente.
Por outro lado, este, como os demais acusados, se enquadra na situação anteriormente prevista, eis que se encontra em liberdade desde o dia 29 de maio de 2013, quando esta 1a Câmara Criminal, através de acórdão de minha relatoria, concedeu a ordem de habeas corpus ao acusado Marcelo de Jesus dos Santos, estendendo-a aos demais réus, entre os quais o ora paciente.
Cumpre salientar ainda que, passados esses mais de oito anos, nem o paciente nem qualquer dos outros réus se envolveu em algum fato delituoso ou deixou de comparecer aos atos processuais.
Por derradeiro, nessas condições, estando prestes a se encerrar a sessão de julgamento, é imperiosa a concessão de medida liminar, sem a qual a ordem não teria nenhum efeito.
Em face do exposto, CONCEDO LIMINARMENTE a ordem pleiteada, determinando que o MM. Juiz-Presidente, em caso de condenação pelo Conselho de Sentença, se abstenha de decretar a prisão do paciente Elissandro Callegaro Spohr, estendendo a orem aos corréus Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão”.
Infelizmente, esse julgamento e decisão não trouxe um vencedor já que todos os envolvidos padeceram da dor da perda de entes e amigos queridos. Mas, ainda mais triste foi a condução desse julgamento com uma decisão que é considerada por muitos juristas como uma aberração jurídica sem precedentes. Lamentável, que após 10 dias tenhamos vislumbrado tal decisão, mas sabemos que haverá recursos a instâncias superiores, onde poderão modificar as penas (condenação não, pois decisão do júri é soberana, por força da constituição) e até anulação do júri já que ocorrem nulidades durante os trabalhos, principalmente quando o assistente de acusação utilizou do direito ao silêncio do depoente como forma negativa e isso é inconstitucional, além de suscitar a nulidade por força do art. 478, II do CPP[8].
Aguardaremos os próximos dias, onde as partes possuem prazo para interposição de recursos, para entendermos o que muda ou não em relação a atual decisão.
Rodrigo Fernandes Advogado Criminalista em Porto Alegre
[1] Souza, Janine: Caso Kiss: Condenados os quatro réus: https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/caso-kiss-condenados-os-quatro-reus/, acesso 11/12/2021. [2] Souza, Janine: Caso Kiss: Condenados os quatro réus: https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/caso-kiss-condenados-os-quatro-reus/, acesso 11/12/2021. [3] Souza, Janine: Caso Kiss: Condenados os quatro réus: https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/caso-kiss-condenados-os-quatro-reus/, acesso 11/12/2021. [4] Ocorre o concurso formal quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Quando o agente não tem autonomia de desígnios em relação aos resultados (concurso formal próprio ou perfeito), aplicar-se-á apenas uma das penas, a mais grave, se diversas, ou qualquer uma delas, se iguais, aumentadas, em qualquer caso, de 1/6 a 1/2. [5] Desígnio autônomo, ou pluralidade de desígnios, é o propósito de produzir, com uma única conduta, mais de um crime. [6] Sistema de exasperação: consiste na aplicação da pena do crime mais grave praticado pelo agente, acrescida de uma majorante (fração) prevista em lei. Esse sistema é estabelecido para o concurso forma próprio (art. 70, caput, 1ª parte, do Código Penal) e para o crime continuado (art. 71 do Código Penal). [7] Decisão do HC disponível: https://www.conjur.com.br/dl/condenados-boate-kiss-nao-podem-presos.pdf [8] Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.
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